DOCE DE TERESA
Teresa, não. As outras não sei, mas ela, com certeza, não. Nunca reclama. Parece um doce que não desanda. Sentada na varanda da sua casinha modesta, mas limpinha, casinha branca de janelas azuis, tão de brinquedo que parece uma pintura. Florezinhas plantadas em latas de óleo vazias, um gato malhado que dorme no primeiro degrau. Borboletas voando que estalam as asas, feito quem diz: “Ai, que bom viver! Ai, que delícia”. Ali não é um lugar, é uma lembrança de infância.
Será por isso que os filhos nunca aparecem? Nem para as festas? As comadres falam “que absurdo!” e outras exclamações cheias de vogais. Teresa, não. Nunca reclama. Ao invés, faz mais doces, mais e mais. E tão difícil que é, veja só: num fogão de lenha! Tem que catar graveto, que ela não tem dinheiro para encomendar lenha já cortada, como a vizinha Salete, aposentada do Correio. Que quê tem? Graveto dá no chão, graveto dá de graça. É só pegar.
Teresa pega as coisas do ar. Com seus olhinhos de jabuticaba, só faz sonhar. Por isso que a vida não dói. Fazendo beiradas de paninhos de copa, vai cabeceando, cabeceando até cochilar. Entra no sonho, toma um sorvete com o primeiro namorado, brinca de roda com as amigas de longas tranças, banho de rio, rouba goiaba e faz doce de tacho... Acorda com o cheiro do doce de verdade. Quase passou da hora de tirar do fogo!
Teresa gostava muito de filme de bangue-bangue. Perdia tempo escrevendo cartas compridas para uma sua prima do interior mais interior que o dela. E tendo já uma queda para o doce, ia matando menos índios, dando menos tiros, amansando os gritos, aumentando os romances e suspiros, terminando por fazer do tal filme, um melado. Mas agradava. A prima sempre respondia agradecida, dizendo que não perderia de jeito nenhum o tal filme quando passasse em sua cidade. Que nunca ia ser: no interior do interior ninguém nem sabia o que era filme, que dirá cinema.
Isso quando era menina-moça. Depois, o marido largou dela e teve de pelejar para criar os sete filhos. Só. Com doce. O que ficava de menino com o nariz espetado na janela, que nem pardal querendo roubar pão da mesa de gente, nem te conto. Um mundo! Esqueceu dos filmes. E o doce? Levado em potes para as casas com mais abastança. Nem por isso acabava de brotar do seu coração, mais doce, mais e mais. Quem não tem vocação para amarga, venha a onda que for — não arrasta. Nem salga.
Nesse meio tempo, teve de botar as cartas, as letras, os filmes, histórias de lado. Para depois. Mas depois sempre vem. Os sete filhos criados foram cada um para um lado. Nenhum puxou o jeito doce, todos traziam o selo do pai: sério, preocupado com essa coisa de fazer dinheiro. Os filhos, iguais, foram buscar o ouro no pote do final do arco-íris. Teresa queria era o pote. E o arco-íris. O ouro, se tivesse, botava de enfeite num bolo.
Um dia, procurando cortes de fazenda para fazer um vestido novo de Natal, deu com as cartas da prima. Que saudade de escrever! A prima, já morta, escrever para quem? Os filhos trabalhavam tanto, os netos e bisnetos nunca iriam responder...
— Pra mim, ué. Então, eu não sou alguém?
A mão, treinada de doce, buscava um gosto de começar. Com canela ou sem? Pitada de baunilha, sim ou não? E foi soltando a imaginação, brotando o caldo em calda. Uma vida toda para contar, bem temperada. Doce que nem ela. Feito compotas guardadas em porões secretos, coisas simplezinhas que, envelhecidas, se tornam finas iguarias que adoçam a mesa dos reis. Escreveu, escreveu, escreveu. Depois amarrou o monte de cadernos de espiral com uma tira de chita florida. E deixou para lá.
Até que um dia... (sempre tem um dia que as coisas mudam, sei lá por quê). Um dia, os filhos disseram que vinham para o Natal. Com a família completa. Vai ver assistiram a um desses filmes xaroposos na televisão, em que morre a mãe velhinha, sofrendo da horrível dor da solidão e do abandono. É verdade que é triste isso de passar borracha em gente, mas Teresa... Teresa, não. Nunca reclama. Achou boa a idéia. E foi fazer doce.
Trabalhou que foi uma enormidade. Mas quando se tem noventa e seis anos já não se é mais uma menina. Vá convencer Teresa disso! Arrumou a casa, preparou tudo, os meninos chegavam daí a pouco. Terminou, guardou o avental e foi se sentar na varanda, na hora da Ave-Maria. Que pôr-de-sol bonito! Parecia um caldo de goiabada esparramado num chão de azulejo azul. Foi cabeceando, cabeceando até cochilar.
Nem o barulho das gentes chegando acordou Teresa. Nem os beijos dos bebês, cheios de lágrimas do medo de ver um rosto tão marcado de rugas. Nem os presentes de todo tamanho. Nem chamando pelo nome, que fazia tempo ela não ouvia de boca outra que não a própria. Nem balançando de leve a cadeirinha. Nem sacudindo, sacudindo. Teresa entrou no sonho e era um sonho tão doce, doce, mais e mais. Não deu vontade de sair. Parecia um sonho de verdade, não como aqueles de padaria. Dos feitos em casa.
Depois do enterro, a família voltou para casa com pressa de ir embora. Não cabiam mais ali. Distribuíram os muitos doces entre si, arrumando as coisas igual quem quer fugir. Quase iam deixando o principal para trás. Porém, um menino se soltou do colo da mãe e, andando por aí, deu com uma ponta de chita florida embaixo da cama. Foram abrindo os cadernos, um por um, lendo devagar, sentando no chão para apreciar. Aquilo é que era doce!
Não sei... É por essas e outras que eu acho que a vida devia começar pela sobremesa. O salgado vinha depois. Porque, às vezes, quando o doce chega, não tem mais espaço...
(in “25 SINOS DE ACORDAR NATAL”, de Flávia Savary, ilustrações da autora, Editora Salesiana, São Paulo, SP, 2001)