sexta-feira, 13 de março de 2009

TEXTO PARA LEITURA


A CRIANÇA DE 6 ANOS NO ENSINO FUNDAMENTAL

Elvira Souza Lima*



Principalmente após a Segunda Grande Guerra, tornou-se uma tendência universal estender a obrigatoriedade do período de escolarização do Ensino Fundamental para nove anos. Hoje é uma realidade na maior parte dos países. Igualmente, a matrícula obrigatória da criança com 6 anos completos no Ensino Fundamental é bastante comum na educação mundial. Sabemos que o aumento da escolaridade das crianças é uma necessidade da organização contemporânea da vida urbana. Neste sentido, o Brasil chega tardiamente a esta obrigatoriedade.
A maior parte dos argumentos a favor e contra esta inclusão discute a questão a partir da perspectiva das aprendizagens escolares e do desenvolvimento da criança centralizados mais na capacidade cognitiva. É necessário, porém, ampliar a discussão: no século XX a infância foi muito discutida a partir da psicologia e da psicanálise. Porém, ela é também objeto de estudo de outras áreas de conhecimento, como a antropologia, a história, as neurociências e as artes.
A infância é um período de desenvolvimento cultural do ser humano, cuja importância vai ficando cada vez mais clara e precisa à medida que avançam os conhecimentos sobre o desenvolvimento do cérebro. As descobertas nesta área já são tão importantes que chegam a afetar a natureza de currículos da Educação Infantil em alguns países. É o caso, por exemplo, da França, que introduziu um currículo para a infância apoiado em pilares diferenciados dos que nortearam a educação da infância durante a maior parte do século XX.
Neste novo currículo, as práticas culturais da infância ganham relevo e o tempo é distribuído de forma que atividades que envolvam música e movimento sejam equiparadas em importância às atividades mais especificamente voltadas à apropriação da leitura e da escrita. Busca-se, assim, uma escolarização que vise à formação da criança enquanto ser de cultura em desenvolvimento.

Quem é esta criança?

A criança que completou 6 anos está no seu sétimo ano de vida. Este período é fundamental no seu desenvolvimento cultural e é marcado por mudanças biológicas importantes. A criança apropria-se, nesta época, das formas humanas de comunicação, desenvolve o vocabulário, experimenta o espaço de várias maneiras, desenvolve o pensamento espacial.
A criança de 6 anos está em processo de desenvolvimento da função simbólica. Neste período, as atividades que envolvam símbolos e significados são muito importantes, como desenhar, brincar de faz de conta, praticar jogos infantis que envolvam personagens e ações imitativas, cantar, dançar, ouvir histórias, poesias e narrativas da cultura local. É muito importante a vivência das práticas culturais de sua comunidade e região, pois a elas estão ligadas a percepção de si mesma como membro de um grupo e à formação da identidade.
No domínio do desenvolvimento cerebral, temos modificações significativas nas estruturas do cérebro ligadas à atenção. Paulatinamente, a criança neste período vai se tornando mais apta a seguir instruções para a realização de tarefas complexas, como as exigidas no processo de escolarização e a prever conseqüências de suas decisões e das ações que realiza. Porém, estas são coisas que acontecem ao longo de um tempo e a criança de 6 anos não está totalmente aparelhada para realizar determinadas atividades que são exigidas pelo Ensino Fundamental só porque completou 6 anos de idade.
A memória infantil neste período está muito ligada à percepção. Portanto as ações pedagógicas precisam estar adequadas a esta condição do desenvolvimento infantil. As atividades próprias deste período devem ser utilizadas no planejamento pedagógico como suporte para a memória. Por exemplo, usar o desenho como registro do que a criança observa, do que vivencia. Recorrer ao movimento é igualmente importante.
Como este é um período importante do desenvolvimento da imaginação, cabe à escola oferecer situações que ampliem o acervo de imagens e narrativas presentes na memória infantil. Histórias, obras de arte, desenhos, músicas, dramatizações, instrumentos musicais, brincadeiras e festas populares, contato com a natureza, oferecem muitas possibilidades para este enriquecimento da imaginação.





Apropriação da leitura e escrita aos 6 anos

Escrever e ler são atividades distintas, relacionadas entre si, mas com especificidades. Quem aprende a ler uma língua não aprende automaticamente a escrevê-la. Assim, todo processo de alfabetização deve incluir atividades para a apropriação da leitura e atividades para o desenvolvimento da escrita.
Há duas vias possíveis de entrada para a leitura no cérebro: a semântica, na qual a palavra como um todo é identificada e reconhecida na memória pelo seu significado; e a via fonológica-ortográfica, em que o leitor percorre a palavra fonema por fonema, constituindo os morfemas até chegar à palavra toda. É necessário, igualmente, construir o significado, pois é possível ler pela via fonológica e não construir significado algum. Por exemplo, a sentença A fleva minura damber flarote pode ser lida por um leitor fluente, mas como as “palavras” não são parte do léxico do português (ou seja, não significam nada) ele não constituirá significado.
Em seu processo de desenvolvimento, a criança realiza várias aquisições que estão relacionadas à apropriação da leitura e da escrita, mas que, na verdade, antecedem
o ato de escrever no papel propriamente dito. Muitas destas aquisições são da alçada da Educação Infantil e, também, da vivência escolar aos 6 anos.
O ensino da leitura envolve a apropriação do sistema da escrita e a formação de comportamentos de leitura. Formar uma pessoa leitora tem como base a comunicação humana, implica a partilha das idéias, informações, emoções e sentimentos. Tudo isso possibilitado pelo uso de um sistema simbólico – a escrita. Entender esta dinâmica de comunicação humana por meio da leitura é importante, pois não se trata somente de aprender a ler, mas de desenvolver uma forma de comunicação humana.
Geralmente, encara-se a leitura apenas como uma aprendizagem escolar envolvendo competências cognitivas, deixando-se de lado a dimensão simbólica que é, de fato, o que a constitui como atividade humana. A leitura e a escrita são manifestações da capacidade humana de simbolizar. São, portanto, frutos da função simbólica. Desenvolver esta função é um eixo central da escolarização aos 6 anos de idade.
O tempo na leitura é organizado pelo ritmo, duração e pausa. Para desenvolver estas características na criança, é preciso que ela se familiarize às seguintes formas de leitura: leitura ritmada, leitura ritmada com rima e leitura modulada. Estas formas de leitura são encontradas em poesia, cordel, letras de música (leitura ritmada); poesia, parlendas, canções infantis com rimas (leitura ritmada com rimas) e, finalmente, diversos tipos de narrativa (leitura com modulação). Desenvolver a sensibilidade à rima é uma das condições para a leitura, ouvir rimas faz parte deste processo. Escutar o adulto lendo é um dos passos iniciais para a criança se tornar leitora.
Passa-se, assim, à criança a mensagem de que para ler há vários procedimentos que podem ser utilizados. Isto é particularmente importante, pois em seu processo para se tornar leitora, ela vai se deparar com palavras, sentenças e textos que não serão imediatamente compreendidos. Nestes casos, mesmo quem já sabe ler há muito tempo, poderá ler em voz alta, mobilizando a memória auditiva com o que ele já tem na memória (léxico), o que o ajudará a identificar as palavras em seu acervo léxico.
Muitas das coisas que a criança precisa desenvolver para aprender a ler e a escrever, para se apropriar dos conhecimentos da matemática, das ciências, da história e dos outros conteúdos escolares são resultantes das práticas de infância. Assim, a criança “cria” condições de aprendizagem dos conhecimentos escolares por meio das brincadeiras, da prática cotidiana com a música, das atividades gráficas e de modelagem. Por isso é importante que essas atividades continuem sendo desenvolvidas pelas crianças neste sétimo ano de vida.
Mais de mil municípios brasileiros já estenderam a escolaridade da criança em seu sétimo ano de vida, ou seja, com 6 anos completos até fevereiro do ano letivo. Sabemos pela experiência de muitos destes municípios que a inclusão dos 6 anos coloca a necessidade de criar uma pedagogia específica para esta faixa etária.
Com certeza, a experiência acumulada pela Educação Infantil em décadas de trabalho com a criança desta idade deve agora ser aproveitada pelo Ensino Fundamental. Desta forma, a educação escolar da criança de 6 anos envolve o conhecimento pedagógico tanto dos professores de Educação Infantil quanto dos professores dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Modelos novos de formação continuada de professor também são necessários para se criar uma pedagogia adequada à infância.
Este é o momento propício para se pensar a educação como uma prática humana voltada para a infância, incorporando os conhecimentos produzidos sobre a criança nas últimas décadas.

* Elvira Souza Lima é antropóloga e psicóloga. É consultora internacional em Educação e pesquisadora associada à Universidade de Salamanca, na Espanha.



Bibliografia:

LIMA, Elvira Souza. Como a criança pequena se desenvolve. São Paulo: Editora Sobradinho 107, 2001.
LIMA, Elvira Souza. A criança pequena e suas linguagens. São Paulo: Editora Sobradinho 107, 2002.


*FONTE: REVISTA CRIANÇA, N°. 42

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